quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Razão e sensibilidade na formação





O engenheiro português Celestino Quaresma apresenta nesta matéria da Revista Engenharia, do Instituto de Engenharia, um depoimento bastante oportuno sobre os desafios de formar um engenheiro civil pleno no mercado atual. O eng. Celestino aponta para as deficiências na formação docente nos dias de hoje. Defende a experiência profissional como condição para a transmissão efetiva do conhecimento e outros conceitos fudamentais. Leia.

Engº. Celestino Florido Quaresma, presidente da Ordem dos
Engenheiros na Região Centro de Portugal com sede em Coimbra

Com um discurso de grande conteúdo e sabedoria, o engº português Celestino Florido Quaresma disse, em recente evento no Paraná, que o que se pretende do engenheiro é que seja alguém capaz de criar, de gerir sistemas de informação e, com base na análise, seja capaz de planejar a produção. “O que se pretende é que o engenheiro saiba interpretar quantitativamente a informação, mas com a intuição que o conhecimento científico proporciona no apoio à decisão. O que se pretende é que o engenheiro saiba aproveitar a informação para fundamentar as decisões e os processos e as técnicas que constituem a produção e o aprovisionamento, sem nunca descurar da inovação”

Com o objetivo de informar sobre o que se passa com a engenharia em Portugal e no restante da Europa, esteve recentemente no Brasil o engº Celestino Florido Quaresma, presidente da Ordem dos Engenheiros na Região Centro de Portugal com sede em Coimbra, representando o Conselho Diretivo Nacional da Ordem dos Engenheiros de Portugal. Ele também pertence ao European Monitoring Comité da Federation Europeéne des Associations Nationaux d’Injénieurs (Feani).

Durante seu pronunciamento no Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado do Paraná (Sinduscon-PR), em Curitiba, o conferencista lembrou ser a capital paranaense irmã gêmea da cidade de Coimbra, que por sua vez tem a universidade mais antiga de Portugal e uma das mais antigas do mundo. Já Curitiba tem a mais antiga universidade do Brasil. “Com colegas que falam a mesma língua e numa cidade como esta eu me sinto em casa”, afirmou em sua saudação.


Quaresma, que é engenheiro civil da área de estruturas, iniciou sua palestra dizendo que, muito para além de defender os interesses dos engenheiros, é dever dos dirigentes de entidades exigir dos engenheiros o máximo de qualidade nos atos de engenharia que se praticam.

“A mensagem que vos deixo é que mostrem à comunidade que, muito para além de interesses corporativos, vocês engenheiros estão preocupados com a qualidade de vida futura no vosso Estado e no vosso Brasil. Que estão preocupados com os grandes temas nacionais e globais como aqueles que dizem respeito à sustentabilidade do meio ambiente e à qualidade de vida no planeta. É preciso mostrar à comunidade que os engenheiros são o melhor recurso estratégico para promover o desenvolvimento do país. A mera defesa de interesses corporativos em luta com outras profissões não dá credibilidade nem leva a lado nenhum. Essa luta se ganha por outra via mais demorada, mas mais eficaz. A engenharia tem de colocar-se perante a sociedade num nível superior. Conseguindo-se esse estatuto, ganha-se mais credibilidade e todo o resto vem naturalmente por acréscimo”.

E aproveitou para saudar os membros do Observatório de Engenharia. “Eles estão iniciando um movimento neste sentido que há de mostrar à comunidade do Paraná e do Brasil o valor da engenharia.” Durante o seu discurso Quaresma passou a expressar sua concepção sobre o tema principal, conforme o que se segue.

“Engenharia é a atividade de concepção, projeto e realização de sistemas ou de produção de bens e serviços, destinados a satisfazer as necessidades da sociedade, com base no conhecimento científico e tecnológico, e segundo paradigmas de ética, eficiência e eficácia, bem como de sustentabilidade e equilíbrio em relação ao meio ambiente.”

“A engenharia civil transforma e adapta a natureza com o fim de otimizar a qualidade de vida dos seres humanos. Para melhorar a qualidade de vida, o homem sempre fez e faz engenharia civil, a qual exige formação científica, engenho, criatividade e inovação.”
“Construções megalíticas. Topografia. Zigurates da Mesopotâmia. Pirâmides do Egito. Farol de Alexandria. Muralha da China. Templos gregos. Estradas romanas. Coliseu e Panteão de Roma. Catedrais românicas. Catedrais góticas. Aço. Metalurgia. Pontes. Geotecnia. Hidráulica marítima. Hidráulica fluvial. Barragens. Aproveitamentos hidroelétricos. Irrigação. Proteção do Ambiente. Construção de edifícios. Acústica. Engenharia sanitária. Estruturas metálicas, de madeira e de concreto. Estradas. Aeroportos. Vias férreas. Segurança. Racionalização do trabalho. Ordenamento do território. Transportes. Urbanismo. Economia. Planejamento. Gestão de empreendimentos. Apoio à decisão. Tudo isto é engenharia civil. Tudo é engenharia.”

E como se forma um engenheiro civil?

“A formação de um engenheiro civil deve assentar numa base científica onde têm lugar as ciências básicas como a matemática, a física, a química e a geologia. E, logo a seguir, as ciências de especialidade, que devem incluir disciplinas como a topografia, a estática aplicada, a mecânica dos sólidos deformáveis, a dinâmica, a resistência de materiais, a hidráulica geral, a hidrologia, a mecânica dos solos e das rochas, a teoria das estruturas, a engenharia de tráfego, desejavelmente complementadas com a informática, noções de economia, de gestão, de sociologia, de psicologia, alguns princípios do direito e, uma ou outra abordagem de carácter humanístico, versando a ética e a deontologia. Como aplicação, vêm depois as disciplinas ao nível de projeto, de gestão, de planejamento e de produção.

“O professor universitário é hoje, em todo o mundo, avaliado e classificado mais por sua atividade na pesquisa científica do que por sua atividade de professor, mais pelo número de artigos científicos que publica e pelo número de vezes que é citado noutros artigos do que pela eficiência e qualidade com que transmite saber aos estudantes através de aulas, de textos de apoio, de palestras ou até de convívio. Naturalmente que, assim, o professor tem tendência a afastar-se do estudante e acaba por não ter influência relevante na sua formação.”


“Há professores de engenharia que nunca exerceram a profissão de engenheiro em nível do projeto ou da produção."

"Assim, os estudantes dificilmente captam deles o espírito da profissão que escolheram. Os estudantes de engenharia esperam ver em seus professores, engenheiros de excelência. Mas, em vez disso, encontram cientistas, alguns de muito elevado nível, mas tantas vezes distantes da engenharia que projeta, que gere, que planeja e que produz.”

Os professores de engenharia, além de doutores com relevante curriculum acadêmico e científico, precisam ter também alguma experiência profissional, algum feeling de engenheiro. Como poderá ser transmitida a vivência de uma profissão, escolhida pelos estudantes, se nunca foi exercida pelos professores? Como se pode ensinar a nadar sem nunca ter nadado?”, pergunta-se Quaresma.

“Mas também não aceitamos a crítica comum de que o ensino da engenharia deveria ser mais prático, com mais componente de trabalhos e projetos! Chega-se, por exemplo, a criticar um jovem engenheiro civil só porque não sabe o que é uma empena ou porque não conhece alguns outros termos da gíria da construção.”

“Caros colegas: não devemos confundir, nem deixar que se confunda, a informação superficial com as bases científicas formativas do ‘saber pensar’, do ‘saber fazer’ e do ‘ser capaz de inovar’.”

“Se não houver cuidado os trabalhos e as disciplinas de projeto e de produção nas universidades podem transformar-se em um conjunto de receitas e de técnicas já muitas vezes repetidas, que se desatualizam e só trazem rotina e pouca ou nenhuma criatividade.

Por isso recomendamos uma chamada de forma acentuada, de engenheiros com carreiras profissionais de excelência comprovada, como professores convidados nas faculdades de engenharia, para colaborar em disciplinas de projeto, de gestão, de planejamento e de produção.”

“A universidade deve ensinar bem as ciências de base e as ciências de engenharia. É com essas ciências que se entende o que está escrito nos livros de engenharia, que se estuda um problema de engenharia. As técnicas e os modos de trabalhar desatualizam-se com facilidade. Os conhecimentos e a formação científica de base, esses não se desatualizam. É com esse background que se faz inovação, que se concebem novas técnicas, novas soluções e novos métodos.”

“Quando uma empresa de construção contrata um engenheiro, o que se pretende não é um chefe de oficina. Não é um encarregado. Esse apenas resolve problemas concretos que já viu resolver. O que se pretende é alguém capaz de criar, capaz de gerir sistemas de informação e, com base na análise, seja capaz de planejar a produção.

O que se pretende é que o engenheiro saiba interpretar quantitativamente a informação, mas com a intuição e a sensibilidade que o conhecimento científico proporciona no apoio à decisão. O que se pretende é que o engenheiro saiba aproveitar a informação para fundamentar as decisões e os processos e as técnicas que constituem a produção e o aprovisionamento sem nunca descurar da inovação.”

“Numa economia cada vez mais aberta, em que a competitividade e a produção de riqueza são alicerçadas no conhecimento e na capacidade de inovação, a formação dos engenheiros é um aspecto fundamental a ter em conta. Esta formação é tanto mais valiosa quanto mais eficaz e duradoura for a sua influência na vida profissional. A passagem da Universidade para a vida profissional tem de fazer-se com uma bagagem de conhecimentos, de competências e de valores culturais e éticos, bem ajustada às exigências das situações em que a engenharia hoje atua.

Ora, em face do progresso científico e da constante inovação tecnológica, quando se fala da formação estamos, também, necessariamente a falar de formação contínua ao longo da vida profissional. É preciso mentalizar, desde bem cedo, o jovem engenheiro para uma contínua atitude e capacidade de permanente aprendizagem.

Na Universidade aprende-se a aprender. Ninguém se forma de uma vez só. Somos estudantes toda a vida.”

“As transformações por que passam as sociedades modernas são cada vez mais rápidas. Assistimos a isso a cada dia que passa. ‘Todo o mundo é composto de mudanças’. Disse-o Luís de Camões num seu soneto há mais de 400 anos. Mas as mudanças que o mundo de hoje está sofrendo são estonteantes.

Não têm precedente histórico. Por esse motivo, hoje, a inovação é crucial para qualquer país. A manutenção de formas de organização ou processos caducos e a recusa e o medo de experimentar e avaliar de prevenção, do que os médicos e o Ministério da Saúde.”

“Sem a formação científica de base não é possível estudar problemas de engenharia. Uma coisa é repetir técnicas já muito usadas e outra bem diferente é encontrar novos métodos, novas técnicas e novas soluções. Mas não tenhamos ilusões: essa formação científica de base, que é fundamental para a engenharia e para a medicina, ou se exige no início dos cursos universitários ou nunca mais se aprende. A informação procura-se na internet, mas a formação… essa não está na internet! A informação e as técnicas desatualizam-se. Para conceber novas técnicas e novos métodos de trabalho é preciso formação científica de base. A engenharia tem de ser muito exigente nessa formação de base.”

“Aos colegas mais jovens, eu gostaria de deixar uma mensagem de confiança e otimismo. Com a formação de base que vocês trazem de um curso de cinco anos, com a excelência exigida pelas universidades brasileiras, não tenham qualquer receio de encarar a profissão de engenheiro civil qualquer que seja a área de atuação. Mas não queiram ser só engenheiros!

Aprendam a gostar de música, das artes plásticas, da literatura, da poesia, do teatro e do cinema. Cultivem-se! Um engenheiro que só sabe engenharia nem sequer engenharia sabe! E aqui recordo um velho provérbio: ‘Pouca cultura é pior do que nenhuma’. Sejam ambiciosos! Mas sejam pacientes, porque os êxitos não se conseguem de um dia para o outro! Definam objetivos ambiciosos e atuem nesse sentido com a confiança de que esses objetivos vão ser atingidos. Há muito para fazer neste país, no resto da América do Sul e no resto do mundo! A vossa ambição será consequência da vossa formação e da vossa cultura. Essa ambição tem de vos levar a subir a fasquia da qualidade.

Tem de vos levar ao nível do melhor no espaço global! O futuro está a dar-vos uma dimensão que vos permite atuar em qualquer parte do mundo. Hoje tem de ser esse o vosso horizonte. Vocês vão ter que dialogar com toda a espécie de pessoas: arquitetos, juristas, economistas, poetas, artistas, professores, comerciantes, operários etc. É isso que a vida nos exige. Ter de dialogar com uma grande diversidade de seres humanos e de sensibilidades. Na realização de um empreendimento, nos processos administrativos, em projeto ou em obra, intervêm sempre vários profissionais, cada um de sua especialidade. Um engenheiro civil nunca trabalha sozinho. Numa equipe de obra ou numa equipe de projeto, a solução ótima para a especialidade onde estamos a intervir pode não ser a melhor para a obra. Há sempre que discutir e que negociar. Mas é a nossa cultura e o respeito pelos valores éticos e deontológicos que fazem a nossa credibilidade. E a nossa credibilidade é fundamental para convencermos os nossos interlocutores de que a nossa solução é boa.”

“A engenharia civil, assim designada há mais de 100 anos, constitui o mais abrangente ramo da engenharia. É a engenharia civil que coordena a atividade da construção. Ela atua ao lado do promotor, ao lado do dono da obra, ao lado do projetista, ao lado do empreiteiro e ao lado da entidade licenciadora. A qualidade da construção tem muito que ver com a qualidade da engenharia que a projeta, que a planeja, que a gere e que a produz. O ato de construir é muito complexo e tem muitos intervenientes.

É o resultado da intervenção de todas as especialidades da construção, da engenharia e da arquitetura. É preciso coordenar e disciplinar todo esse processo. Só a engenharia civil tem essa capacidade e essa competência.”

“Os engenheiros civis têm de contribuir para garantir as condições de segurança das construções. Para garantir as condições de segurança e saúde para os trabalhadores nos locais de trabalho. Para prevenir e minimizar os efeitos das catástrofes naturais, como os sismos, os maremotos, os furacões ou as inundações. Para garantir a proteção das orlas costeiras. Para garantir um melhor aproveitamento dos recursos naturais.

Para melhorar o ordenamento e desenvolvimento do território e as condições para elevar a qualidade de vida das populações. Para garantir a defesa do ambiente, minimizando os impactes das construções. Para reduzir a sinistralidade nas estradas, bem como nos estaleiros de construção, através de melhores projetos e sistemas construtivos adequados. Para combater a corrupção, através de propostas que simplifiquem as normas e regulamentos em vigor, com análise dos processos produtivos e dos sistemas de avaliação e de decisão.”

“A formação de engenheiros civis, a verificação das suas competências e dos regulamentos que sabem aplicar, já não é apenas um problema de cada país e das respectivas associações profissionais, mas de todos os utilizadores do resultado desse trabalho. É um problema de toda a sociedade.”

“Dentro desta ideia teve lugar em Lisboa, em 12 de março de 2008, o Primeiro Encontro das Associações de Engenheiros Civis dos Países de Língua Portuguesa e Castelhana. Foi então redigida, em português e castelhano, a chamada ‘Declaração de Lisboa’, que no capítulo IV parágrafo 6 diz: ‘Para o exercício da profissão de engenheiro civil, com as competências reconhecidas ao longo das últimas décadas, considera-se necessária uma formação integrada de ensino superior com um mínimo de cinco anos’. Já levei ao European Monitoring Comité da Federation Europeéne des Associations Nationaux d’Injénieurs (Feani) o texto em inglês deste documento. E foi-me pedido que se enviasse ao Conselho da Feani todos os documentos produzidos por esta associação de engenheiros civis que representa mais de meio milhão desses profissionais, numa população total de 630 milhões de habitantes. Vejam a força política que esta associação pode vir a ter.”

“O Conselho das Associações Profissionais de Engenheiros Civis de Língua Portuguesa e Castelhana é presidido pelo Bastonário da Ordem dos Engenheiros de Portugal. Já houve um segundo encontro em Brasília em 11 de dezembro de 2008 e o próximo será em data muito próxima em Montevideu, Uruguai.”


Para ler outros interessantes textos como este veja a página do Instituto de Engenharia.


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