terça-feira, 11 de setembro de 2012

Moacir Leite, um eterno mestre

Recentemente, volta a memória a saudosa lembrança do eterno mestre Moacir Leite, com quem tive a honra de estagiar no famoso escritório de cálculo estrutural Leite & Miranda. Moacir nos deixou muito cedo. Foi um professor inspirador. Suas aulas de Concreto Armado na Escola Politécnica da UFBa eram sempre singulares e muito procuradas pelos ávidos alunos em busca de conhecimento. Seus trabalhos de conclusão das disciplinas eram um desafio motivador.

Quando tive o primeiro contato com o mestre Moacir foi em sala de aula. Mas conheci verdadeiramente o engenheiro durante o estágio realizado em 1990. Lembro-me de ter ficado encantado com a quantidade de livros que encontrei em seu escritório. Constatei quanto é importante para um engenheiro de estruturas colecionar livros. São nossos companheiros fiéis.

Moacir costumava pronunciar frases marcantes, como a célebre referência a equação de dimensionamento da área de aço nas estruturas de concreto armado. Ele sempre dizia que essa equação deveria ser obrigatoriamente conhecida por todo e qualquer engenheiro civil.

Gostava do uso do computador como ferramenta de cálculo, tendo desenvolvido muitos programas para permitir o cálculo de estruturas em geral. Mas alertava sobre o perigo em se usar tais instrumentos como "caixas pretas". Também empregava o que havia de mais moderno em programas comerciais. E ao longo de sua carreira projetou muitas arrojadas estruturas na Bahia e no Brasil, tendo sido precursor no uso de lajes sem vigas aplicadas em prédios altos.

Tenho comigo uma ótima referência do professor Moacir na sua visão mais alargada sobre a interação entre a engenharia e a arte, no artigo de 1996, que transcrevo na íntegra a seguir.

Engenharia e Arte (1996)
Engº Moacir Leite, MSCE


A dissociação entre criação artística e tecnológica só existe nas produções medíocres. O supersônico Concorde, a ponte pênsil Golden Gate e a torre de Toronto são criações originais, arrojadas, de volumes equilibrados e de clara leitura, eficientes, emocionantes, além de úteis. São criações de engenheiros. A visão de alguns do trabalho do engenheiro como complexo, porém destituído de componentes estéticos, intuitivos e emotivos se constitui num preconceito que ignora a natureza das atividades de engenharia propriamente dita.
Como ocorre em várias profissões de nível superior, muitos dos que recebem o grau de engenheiro não se dedicam às suas atividades mais características. São estas os projetos, a pesquisa e o desenvolvimento, e o ensino. A maioria se atém, entretanto, à administração e fiscalização de obras, à manutenção, às vendas, além de atividades correlatas que requerem formação universitária nas áreas ligadas à matemática, física aplicada e administração técnica.
Os engenheiros que projetam, os que pesquisam e os que ensinam já foram comparados aos músicos que compõem, aos críticos musicais e aos regentes. Em vez de sinfonias criam-se aviões, pontes e torres, freqüentemente transmitindo emoções pelo desafio vencido e proporcionando fruição estética nas produções mais felizes.

Calder criou os móbiles, esculturas que se movimentam elegantemente, penduradas em fios metálicos. Percebendo o equilíbrio e valor estético dos jatos intercontinentais, propôs pintar a frota da Braniff. Executou trabalhos não figurativos sobre toda a superfície externa, assinando na fuselagem. Não havia nestes jatos qualquer marca da companhia, mas eram os mais facilmente reconhecidos nos céus e aeroportos. Alexandre Calder entendeu a afinidade dos seus móbiles com a escultura do Boeing 707. Contra o possível argumento da produção em série, basta lembrar que as gravuras assinadas e numeradas são reproduções de às vezes centenas de exemplares. Os escultores também fazem "múltiplos".
No projeto de estruturas de pontes, torres e edifícios inovadores não existe nem a multiplicidade. São produções únicas, de autoria de um só criador, embora assessorado por diversos especialistas em aspectos particulares do trabalho.

As pontes mais emocionantes, algumas vencendo vãos de mais de um quilômetro, são as pênseis e as estaiadas, penduradas por cabos de aço, das quais uma das mais expressivas é a Golden Gate. Nela, a simplicidade dos cabos parabólicos, pendurais, estrado e torres compõem formas de harmoniosa percepção. Se integram à paisagem da Baía de São Francisco como as gaivotas e o assobio do vento nos tirantes. A ponte de Brooklin é tão amada pelos nova-iorquinos que a cidade parou por uma noite no ano de 1983 para o aniversário dos cem anos, com festa e fogos de artifício. O engenheiro chinês T. Lin projetou uma ponte curva suportada por cabos que se dispõem como uma harpa, a partir de duas montanhas da Califórnia, e venceu novecentos concorrentes em concurso nacional de arquitetura. O impacto das grandes pontes é tão forte, que uma das placas de platina enviada para fora do sistema solar pela nave Pioneer, com desenhos sobre o nosso planeta, incluía a Golden Gate, entre poucos outros desenhos e símbolos. São produções de responsabilidade de um engenheiro criador, que utilizou conhecimento, aliado à experiência e intuição. A ligação do autor com a criação é tão forte que o estruturalista da ponte de Takoma morreu de desgosto poucos meses após o vento ter ocasionado a ruína de sua obra.
As mais altas estruturas são as torres de Toronto (quinhentos e cinqüenta metros) e Moscou (quinhentos e quarenta metros) e os edifícios Petronas Tower, em Kuala Lampur, e Sears, em Chicago, (quatrocentos e cinqüenta e quatrocentos e trinta metros). Para estas edificações, o efeito do vento e terremotos é tão importante quanto as cargas verticais, e a forma é ditada pelo comportamento estrutural. Fazlur Khan, engenheiro paquistanês, criou os conceitos inovadores de tubo perfurado e feixe de tubos. O edifício Petronas tem nas fachadas a estrutura resistente principal, constituindo-se de pilares próximos e vigas altas, que formam em conjunto um tubo com furos, onde são instaladas as esquadrias. O edifício Sears foi idealizado numa lanchonete, quando Khan notou a rigidez de um feixe de canudos. Daí o conjunto de tubos.
 
Petronas Towers


Ao final, harmonia, eficiência e força. A torre de Toronto, otimizada para o comportamento estrutural, resultou em escultura emocionante, de linhas elegantes e simples.
Os grandes concursos internacionais de arquitetura têm premiado, em essência, estruturas inovadoras, criadas por engenheiros projetistas, fazendo parte de equipes de arquitetos.

Tais foram o Museu Pompidou de Paris e a Ópera de Sidney. Nervi, com suas coberturas rendilhadas, e Candela, com as igrejas de tetos em cascas de concreto proporcionalmente mais finas que a casca de ovo, foram ambos engenheiros.
Nas criações mais arrojadas, eficientes e harmoniosas da engenharia o componente estético está sempre presente. No renascimento, o mesmo Michelangelo que projetou a estrutura de maior vão da época, a cúpula de São Pedro, foi o pintor da Capela Sistina e o escultor da Pietá.

Hoje muitos dissociam o trabalho do engenheiro da ocupação do artista, entre eles do arquiteto.
Nas grandes pontes, onde o criador é o engenheiro de estruturas é onde se comprova mais facilmente o valor estético do trabalho. Nos edifícios mais altos, nas coberturas de maior vão, as exigências estruturais são tão grandes que o engenheiro estruturalista naturalmente assume a liderança do projeto, e ao fazê-lo gera edificações elegantes e harmoniosas.
Ao interpretar as leis da natureza com a ajuda do ferramental físico-matemático, o engenheiro, nos seus melhores momentos, produz criações emocionantes e belas.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

O código de Hamurabi e a segurança das estruturas

Na edição 89, de Jan/Fev de 2012, da Revista Informa da ABECE - Associação Brasileira de Engenharia e Consultoria Estrutural, o Prof. Dr. Péricles Brasiliense Fusco apresenta um artigo técnico com título “Controle da Resistência do Concreto”, onde de forma brilhante discute desde conceitos básicos da Segurança Estrutural até elementos mais aprofundados sobre o controle da resistência do concreto.

O professor Fusco é reconhecido pelos ex-alunos e colegas pela capacidade de síntese e pela coragem ao enfrentar e derrubar as barreiras do conhecimento, o que resultou ao longo de sua trajetória em grandes contribuições para a engenharia.

Notoriamente em seus escritos emana uma verve muito pessoal, que consegue transpassar o trivial no tocante aos textos de caráter técnico, permitindo ao leitor entrar em contato não apenas com as questões óbvias, mas forçando ou despertando no mesmo o interesse filosófico sobre o problema. Isso se deve a sua natural habilidade em tecer comparações inusitadas, que sempre tem um perfil filosófico e histórico.

Como excelente pesquisador, o professor Fusco é provocativo em algumas de suas considerações, se tornando o melhor exemplo de um profissional onde as habilidades intelectuais ultrapassam fronteiras e permitem, como síntese do conhecimento, ver o homem e suas obras de forma mais ampla, com um propósito e uma ordenação lógica.
Um exemplo nesse artigo de tais aptidões está em uma afirmação que inquieta mesmo os mais experientes projetistas de estruturas. Na introdução desses conceitos sobre segurança, o professor Fusco de forma categórica afirma:
 

"A ideia de probabilização da segurança das estruturas sempre existiu, desde o código de Hamurabi. Não existe estrutura absolutamente segura. Sempre existirá uma probabilidade de ruína."


A afirmação chama a atenção não apenas por ser inquietante, na medida em que para muitos leigos as estruturas são consideradas quase sempre absolutamente seguras e, para alguns, até "eternas".

Sem querer buscar aprofundar tal afirmação ou alardear os leitores sobre a segurança de suas moradias, o que se deixa para aqueles que vão ler na íntegra o artigo, mas voltando à atenção para a referência ao código de Hamurabi, percebe-se o senso provocativo da questão.

Para muitos, esse código é referenciado apenas por tratar da velha lei de talião, "olho por olho, dente por dente". Mas o que isso tem a ver com a segurança das estruturas?

Buscando ler mais atentamente o código, encontra-se no capítulo XIII - médicos e veterinários; arquitetos e bateleiros (salários, honorários e responsabilidade), nos itens referentes às responsabilidades de um arquiteto ou construtor, que:

Art. 227 - "Se um construtor edificou uma casa para um Awilum, mas não reforçou seu trabalho, e a casa que construiu caiu e causou a morte do dono da casa, esse construtor será morto.”
Ou ainda:
229º - Se um arquiteto constrói para alguém e não o faz solidamente e a casa que ele construiu cai e fere de morte o proprietário, esse arquiteto deverá ser morto.
230º - Se fere de morte o filho do proprietário, deverá ser morto o filho do arquiteto.
231º - Se mata um escravo do proprietário ele deverá dar ao proprietário da casa escravo por escravo.
232º - Se destrói bens, deverá indenizar tudo que destruiu e porque não executou solidamente a casa por ele construída, assim que essa é abatida, ele deverá refazer à sua custa a casa abatida.
233º - Se um arquiteto constrói para alguém uma casa e não a leva ao fim, se as paredes são viciosas, o arquiteto deverá à sua custa consolidar as paredes.”

De sorte que, com bom humor, obviamente evoluímos nos padrões de punição para algumas árduas tarefas, onde se destacam as construções das habitações humanas. Todavia, ficam as questões para o engenheiro de estruturas apontadas desde muito sobre como “reforçar”, tornar “sólido”, e não “viciosas”, as construções.

Fato é que têm-se hoje outros mecanismos para avaliar o desempenho, qualidade e segurança de uma estrutura, onde se incluem as ferramentas probabilísticas descritas no artigo, mas ainda fica a lição de que, em outros tempos, melhor noção sobre as atribuições humanas e suas limitações parece ter sido tônica dos legisladores.

Assim, fica a inquietante provocação: onde considerar-se apenas a responsabilidade que se traga também a limitação quanto ao exercício da profissão. Se os mesopotâmios, há mais de 1700 a.C., tinham a noção sobre as atribuições e limitações na sociedade sobre o papel de se construir habitações humanas, por que hoje tal noção foi esquecida? E qualquer um se acha no direito de construir?

Mais ainda, onde está a preocupação quanto a formação plena do construtor e suas atribuições? É simples convencionar-se que o problema da segurança está apenas correlacionado ao “reforço ou solidez do trabalho”, conforme Hamurabi. Mas, como é possível verificar no artigo apresentado pelo professor Fusco, a compreensão da segurança vai muito além, com modelos teóricos complexos e que dependem de abordagens técnicas sofisticadas e que, por vezes, não garantem os infortúnios, onde, por desgraça de alguns, faltou qualidade e compromisso ético por parte do construtor. Neste caso, fica a reflexão, trata-se de um caso de polícia ou de educação?